A CIÊNCIA DO AMOR MATERNO *
"Amor, só de mãe". Em
algum pára-choque de caminhão, a frase folclórica revela mais o
sentimento do caminhoneiro do que a relação psicológica existente entre
mães e filhos. É que, por mais intrigante, o amor de mãe pouco difere
do amor de pai, irmão, padrasto, madrasta, marido ou mulher. Por mais
que as supermães protestem e afirmem que o amor a seus filhos está
acima de suas próprias vidas! Isso se deve a razões pouco conhecidas: o
instinto materno é um mito e entre os seres humanos não há amor
incondicional. "Entre nós, todo amor é construído" - afirma Maria
Tereza Maldonado, mestre em Psicologia Clínica pela PUC (Pontifícia
Universidade Católica) do Rio de Janeiro, integrante da Academia
Americana de Terapia de Família e da Associação Mundial para a Saúde
Mental Infantil.
A mais respeitada terapeuta familiar do País no exterior é autora de
24 livros sobre terapia familiar e infantil. O seu best-seller
Comunicação entre pais e filhos, que vendeu 75 mil cópias no Brasil,
foi publicado em espanhol pela Paulinas Editora venezuelana. Ela
conversou com FAMÍLIA CRISTÃ em seu apartamento, em Copacabana, sobre as
relações entre mães e filhos. O resultado vem a seguir.
FC - A tese de que o amor materno não é natural, mas construído, é uma novidade entre os estudiosos do comportamento humano?
- Não. Trabalhos de antropólogos e sociólogos que estudam a
maternidade nos tempos antigos verificaram que em determinadas épocas
era comum abandonar as crianças. Os bebês eram colocados em instituições
ou dados para serem criados e poucos sobreviviam. Não só as famílias
carentes faziam isso, mas também as ricas. Tal atitude mostra que
cuidar dos filhos não é um instinto.
FC- Isso ocorria só com os filhos não desejados?
- Com todos, legítimos ou bastardos. Por volta dos séculos XV e XVI,
tratava-se de um pensamento generalizado que os filhos não precisam ser
cuidados por suas famílias. A criança não tinha, na Idade Média, a
condição de ser humano, com direitos a bons tratos.
FC- Quando as crianças começaram a ganhar, particularmente das mães, o carinho merecido?
- Por volta do século XVIII, houve uma mudança no discurso dos
filósofos; e no século XIX surgiu, por parte dos médicos, a idéia da
importância do amor materno.
FC- Sendo assim, o chamado instinto materno, entre os seres humanos, é discutível?
- Totalmente. Ainda hoje há um número expressivo de crianças
abandonadas, maltratadas, espancadas e até mortas por suas famílias,
mostrando que o vínculo biológico não garante amor e proteção. Por outro
lado, observam-se famílias com filhos adotivos e homens e mulheres que
partiram para novos casamentos e acolhem as crianças de seus
companheiros e companheiras com amor profundo. É a prova de que o amor a
uma criança não depende do vínculo biológico.
FC- Resumindo, instinto materno é um mito.
- O que existe é amor materno, sentimento adquirido que se estabelece
pelo contato e disposição da pessoa em amar a criança. Agora, a frase
"amor, só de mãe" tem certamente um fundo de verdade. O amor de mãe
costuma ser mais estável, confiável, puro e supera melhor as
dificuldades. Mais do que o amor entre um homem e uma mulher. Mesmo ele,
porém, pode ser desconstruído.
FC - Desconstruído? É possível a senhora explicar melhor?
- As relações humanas são muito complexas. Como entre os seres
humanos todo amor é construído, ele também pode ser desconstruído. Um
homem e uma mulher se amam porque o amor deles foi construído. Sendo
assim, pode ser demolido. Um fato novo pode acabar com ele. As
separações e os divórcios estão aí para mostrar. Quantos irmãos que a
princípio se amavam rompem e passam o resto da vida sem se falar? Às
vezes, os próprios pais têm um vínculo de amor com um filho e acontece
algo em certa altura da vida e esse vínculo é cortado. Os motivos são
variados: o filho se casa com uma mulher que os pais desaprovam...
Entre nós, o amor não é uma coisa inabalável.
FC- Como também pode ser reconstruído, não?
- Sim. Tudo que é construído pode ser desconstruído e, novamente,
reerguido. Um exemplo? Determinada mulher tem um filho do homem que a
deixou. Tempos depois, 10, 15 anos, esse homem quer ter contato com a
criança que ele rejeitou. Tal contato pode ser significativo para os
dois e para eles construírem uma relação de amor.
FC - O instinto materno é o único mito envolvendo mãe e filhos?
- Outro mito é dizer que as mães gostam dos filhos igualmente ou os
criam da mesma maneira. Na verdade, cada relação tem uma peculiaridade.
E quanto àquela tese freudiana a qual os filhos se apegam mais às
mães, e vice-versa e as filhas se apegam mais aos pais não é uma regra.
Nem sempre acontece.
FC- Como rebater o argumento dos que defendem o instinto materno?
- O instinto materno seria verdadeiro se a mulher tivesse em seu
equipamento biológico algo que a levasse a amar automaticamente seu
filho. E ela não tem. Algumas mulheres pensam ter porque começam a amar
seu filho ainda na gestação, se encantam só de pensar em tê-lo. Isso é
possível. Mas só prova que o amor é construído no seu psiquismo. O
mesmo mecanismo afetivo acontece nas adoções. O casal não consegue ter
filhos e decide adotar. Então, o homem e a mulher passam a construir o
amor por essa criança, antes mesmo de conhecê-la. Tanto que quando um
casal conhece a criança acontece o que se chama "amor à primeira
vista". E não é. Esse amor vinha sendo construído há meses, anos. O
amor, assim como um feto, também é gestado.
FC - O interessante é que a maioria dos animais irracionais é dotada
de instinto materno, talvez até movida pela necessidade de perpetuar a
espécie.
- Uma pata ou uma galinha assim que têm seus filhotes, estes vão
atrás delas, os põem sob suas asas. Essa necessidade de proteção
acontece com as cadelas, as éguas e outros animais. Elas, sim, têm
instinto. Claro que, quando o homem corta a seqüência da natureza e
separa os filhotes da mãe logo após o parto e, dias depois, os devolve
para a mãe, rompe-se a seqüência instintiva entre a fêmea e os
filhotes. Com os macacos em cativeiro, quando separam a mãe dos
filhotes por um ou dois dias, a mãe já não reconhece as crias. E aí sim
a mãe pode matá-los. Na natureza, não. A mãe põe os filhotes nas
costas, lambe-os e os protege dos predadores.
FC- Não há necessidade de a mulher amar seu filho de forma natural por uma questão de continuidade da espécie humana?
- Há várias motivações para se construir o amor a uma criança. Uma
delas é o desejo da transcendência. Ao dar à luz a uma criança, a
mulher vê a continuidade de si mesma pelas gerações futuras. Mas esse é
apenas um motivo para ter um filho e é bem mais forte entre os animais.
Porque entre os seres humanos, pelo que se vê geograficamente, hoje em
dia, há países com baixas taxas de natalidade. Muitos casais não
querem filhos. Por outro lado, a continuidade da espécie humana não
corre risco de extinção. Ao menos por enquanto.
FC- Por que a tese da ausência do instinto materno choca as pessoas, particularmente as mães dedicadas?
- Porque, culturalmente, a partir dos séculos XVIII e XIX, passou-se a
enaltecer a posição da mãe como aquela que ama e protege seu filho,
cuida dele por um tempo infindo. A imagem cultural da maternidade vem
cercada desse idealismo e de clichês como "Mãe é padecer no paraíso",
"Mãe ama incondicionalmente o filho". E isso, precisamos admitir, não é
a regra. Nem toda mãe consegue amar seu filho logo que ele nasce. A
cobrança da sociedade e da família em relação à mulher, para esta amar
seu filho já a partir do primeiro momento que o vê, é muito forte. Sem
falar que a experiência de dar à luz, para a mulher, gera mais do que
um tipo de sentimento. É algo profundo e forte.
FC - Quando não assustador.
- Sim, porque nem sempre as pessoas lembram que aquela gravidez pode
não ter sido planejada, a mulher não aprovou muito a idéia e está em
dúvida se engravidou no melhor momento. Ela até pode imaginar um tipo de
bebê e de repente vem outro. E, em vez de se encantar, se decepciona.
Ou, ao menos nos primeiros dias, fica assustada com a idéia de cuidar
durante muitos anos de uma pessoa totalmente dependente dela. Isso tudo
dá medo, gera frustração, culpa e sofrimento.
FC - Felizmente, a maioria das mães tem capacidade para superar estes problemas, não?
- Esses e mais outros. Consegue desenvolver e nutrir esse amor
materno fazendo coisas que até Deus duvida por essa criança. Mas isso
não é uma regra. Nem todas as mulheres nasceram para ser mães, algumas
por não serem capazes de construir um amor materno ou não terem vocação
para a maternidade, outras por optar pela profissão.
FC - Há mães tidas como mais superprotetoras do que as outras, como
as italianas e as judias. A mãe brasileira, latina, não poderia ser
classificada como tal?
- É perigoso partir para qualquer generalização. Você tem, de fato,
mães brasileiras que cuidam muito bem de seus filhos, se preocupam com
eles. Muitas vezes até se tornam superprotetoras, principalmente agora
que nós estamos vivendo problemas da violência urbana nos grandes
centros e isso põe em risco as crianças. Mas, geralmente, a
superproteção atrasa o desenvolvimento das crianças e dos
adolescentes... Se eu tivesse que dar um recado às mães seria este:
criem seus filhos com carinho e respeito, pois nós precisamos formar
gerações solidárias e não violentas para este mundo se tornar melhor.
FC- Se o amor de mãe é construído, um pai também pode amar seu filho com a mesma intensidade de uma mãe?
- Claro. Há pais que cuidam de seus filhos de uma maneira mais
satisfatória do que muitas mães. Esse modo paterno de cuidar, proteger,
nutrir e acompanhar é muito importante. No plano do amor construído a
seus filhos, pai e mãe devem ficar no mesmo patamar.
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